Entre o medo e o cuidado: será que o papa correu risco de eutanásia?

Após a alta do Papa Francisco uma matéria chamou muita atenção na mídia, trazendo o título: “Médico do papa diz que teve que decidir entre deixá-lo morrer e seguir o tratamento”.

A manchete repercutiu em diversas fontes, mas não se encontra no “Vatican news”, tampouco é possível encontrar a entrevista original com o Dr. Sergio Alfieri, com as falas na íntegra na web, o que nos deixa ainda mais intrigados.

Será que a fala do Dr. Alfieri foi essa mesmo? Ou será que algum veículo de mídia quis divulgar que “os médicos pensaram em desistir do tratamento e deixá-lo morrer”. Por quê? 

Pode significar desde algo inocente, quanto o temor íntimo do médico quanto ao prognóstico do pontífice, agora aliviado pela melhora. Mas também pode significar que estiveram à beira de desligar suportes de vida, a fim de impedir a distanásia (prolongamento doloroso da morte).

Pensando nessa segunda possibilidade, é necessário fazer um alerta. Este é o objetivo deste texto.

Medo da eutanásia x Medo da Obstinação Terapêutica

De um lado, ouvimos com frequência o argumento no sentido de “demonizar” quem tem ojeriza ao risco da eutanasia. Afinal, um medo exagerado da eutanasia pode acabar por levar a situações de distanásia. 

Por outro lado, o medo desmedido da obstinação terapêutica, poderia tirar a chance de pacientes que poderiam se recuperar.  

Não se pode deixar que o medo seja o fio condutor de decisões importantes como essas. Além disso, o senso das proporções nos indica que a eutanásia passiva é mais perigosa que a distanásia, que assim que identificada com mais certeza, pode ser interrompida.

Nos casos em que há dúvida quanto ao prognóstico, o ideal é manter os suportes por um período de tempo para observar a resposta. Se houver melhora, segue-se o tratamento invasivo, se há evolução clara para processo ativo de morte, pode-se “desligar os aparelhos” para evitar distanasia com a segurança de não estar incorrendo em eutanásia passiva.

O Papa Francisco se recuperou. Ainda bem que seu tratamento foi mantido por tempo suficiente para isso. Na própria reportagem, há o relato de que o pontífice teria pedido que se “tentasse de tudo” para salvá-lo.

Desespero diante da morte e a sua autoridade o salvou?

Alguns bioeticistas preocupados com o risco de obstinação terapêutica poderiam argumentar, em certos casos, que até mesmo o desejo do paciente manifestado de “tentar tudo” para sobreviver não  deve ser sempre levado ao pé da letra.

Além disso, há que se considerar a capacidade decisória, que pode estar comprometida diante da dor e estados de consciência alterados. Isso vale para o paciente que pede para se tentar tudo para salvá-lo e também vale para o paciente que diz “desistam, vou mesmo morrer”. 

Porém, em defesa da prudência e dos direitos humanos, visando evitar aquilo que é irreversível e mais valioso (a tutela da vida), algo deveria ficar claro: a autonomia do paciente em estado grave pode sim ser relativizada quando ele pede para morrer, mas não quando ele pede para que a equipe médica o salve. Neste caso, apenas tratamentos verdadeiramente fúteis (futilidade fisiológica) devem ser limitados, evitando-se critérios subjetivos de futilidade.

Foi isso que salvou o Papa?

Neste caso, poderíamos nos questionar: será que uma pessoa simples ou mesmo um morador de rua, em qualquer hospital, teria sido ouvido ao pedir que a equipe médica tentasse de tudo? Ou diante de um paciente menos importante a noção do médico de que beirava-se o risco de obstinação terapêutica iria prevalecer.

E a temática torna-se ainda mais complexa quando se trata de paciente inconsciente. No caso do Papa, ele esteve consciente durante todo o tratamento. Para piorar, há condutas médicas que o paciente deixa de estar consciente por indução do médico. Neste cenário, não é de se admirar que uma pessoa tenha até medo de ser internada e jamais voltar por critérios e condutas incertas da qual não terá autonomia alguma.

O medo da distanásia pode levar à morte de pacientes, e portanto, não deve ser onorte para as condutas médicas. 

Deve-se estar atento ao risco da “profecia auto-realizável”, quando a equipe médica, ao apostar num prognóstico muito ruim, desiste de tentar. Em seguida, o paciente morre e o prognóstico é “confirmado”. Mas será que seria diferente se não tivessem recuado com os tratamentos invasivos?

Por um lado, a medicina pode ser usada de forma obstinada e desumana. Isso faz lembrar o livro (e o filme) do Frankenstein, onde o médico não aceitava a finitude da vida e a realidade da morte, chegando a “criar uma vida humana” com partes de cadáveres, um monstro. A ficção mostra que, após criado, o médico arrepende-se e vê que aquele “monstro” é uma pessoa, trazendo um drama de dignidade humana e bioética da nova criatura feita de partes de cadáveres. Tal como no enredo de ficção, a medicina poderia ser capaz de monstruosidades para tentar tomar o lugar de Deus e “dar a vida” a quem já está em processo de morte. Com implantes de chips, em tempos de “transhumanismo” e Inteligência Artificial (IA), podemos imaginar que adulterações biotecnológicas com IA poderiam dar ideias monstruosas de salvar vidas tornando o corpo da pessoa um hardware de algo que sequer saberemos dizer o que seja, talvez, ao custo de sofrimento para a pessoa, instrumentalização de doentes, sem falar no uso militar.

Mas nas realidades mais normais dos hospitais, próximas ao que viveu o Papa Francisco, existe um risco do médico ter medo da obstinação e deixar pacientes morrerem, em especial quando os conhecimentos em cuidados paliativos da equipe são incipientes, ou quando há pressões externas das mais variadas.

Deve-se evitar a distanásia e ao mesmo tempo ter muita prudência ao limitar tratamentos. Os cuidados paliativos, em sua essência, não devem prolongar a morte e nem antecipá-la.

Dra Manuela Conduru, médica geriatra, com áreas de atuação em dor e medicina paliativa, pós-graduanda em bioética no Instituto Pius.

Marlon Derosa, cofundador e professor no Instituto Pius. Máster em Bioética pela Jérôme Lejeune (Espanha) e doutorando em bioética pelo Ateneo Regina Apostolorum de Roma. 

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