Famosa pesquisa, Turnaway Study[1], sobre efeitos do aborto na saúde mental das mulheres, embora usada com frequência para afirmar que mulheres não tenham efeitos nocivos do aborto na saúde mental, pode, ao contrário, apresentar um problema significativo de “viés de seleção”, pois teve 31% de participação. A baixa participação das mulheres é um indício de que haja desconforto ou relutância em reviver experiências traumáticas.
Veja que 69% não aderiu a seguimento da pesquisa.
O que você presumiria, ao pesquisar 10 mulheres pós aborto, se 7 não tiverem interesse em seguir na pesquisa sobre transtornos psíquicos relacionados ao aborto?
Certamente, nos 31% da amostra inicialmente projetada, que respondeu a pesquisa, pode se encontrar um percentual maior de mulheres com alívio relacionado a decisão, e as outras 69% que evadiram a pesquisa, podem ser justamente aquelas que apresentam desconforto emocional ao tratar do tema.
Existem sim outras razões para evasão da tantas mulheres numa pesquisa, como estigma e privacidade, desinteresse ou falta de tempo, porém, a relutância em reviver experiências traumáticas é um elemento amplamente conhecido na literatura de saúde mental, como possível indício de Transtornos de Estresse Pós-Traumático (TEPT), transtornos de ansiedade ou depressão. Existe uma ampla literatura que confirma o evitar o assunto é um sinal de transtornos psíquicos relacionados.[1-5]
A evasão de sintomas pós trauma é uma evidência indiscutível, estando inclusive no DSM-5 (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 5ª edição). No TEPT, a evasão é um dos principais critérios diagnósticos e refere-se aos esforços persistentes do indivíduo para evitar lembranças, pensamentos, sentimentos ou qualquer coisa que esteja associada ao evento traumático.[6]
Essa interpretação foi ressaltada por recente pesquisa, de maio de 2023, publicada pelo Dr. David Reardon e outros autores, na revista acadêmica Cureus[7]. A pesquisa[7] destaca que a interpretação do estudo Turnaway[1] para satisfação com a decisão do aborto negligencia fatos da própria pesquisa Turnaway, que mostra que 41-66% apresentou arrependimento, 64-74% tristeza, 53-63% culpa e 31-43%, por exemplo. A pesquisa de Reardon e colaboradores[7] discute amplamente os vieses e possíveis incongruências relacionados a interpretação do estudo Turnaway, que por vezes é maximizado por interpretações ainda mais distantes da realidade quando tratados por alguns veículos de comunicação de massa.
Outro viés da pesquisa foi explicado pela Dra. Martha Shupping, indicando que o estudo de Biggs et al (2016)[8], baseado na pesquisa Turnaway[1]. Shupping explicou que de os dados da pesquisa conter cerca de 1/3 apenas das mulheres recrutadas, invalida seus resultados. Ressalta ainda que os pesquisadores davam incentivo de 15 dólares a cada mulher que participavam de
entrevistas por telefone em torno de uma semana após o aborto, mesmo assim, houve grande evasão. Portanto, os resultados se basearam em uma parcela muito pequena de mulheres, cerca de 25% da amostra total originalmente desejada pelos pesquisadores[9].
Adicionalmente a estas criticas, vale ressaltar que neste debate polarizado, pode haver conflito de interesses, por adesão ideológica ou vinculação institucional entre pesquisadores. Acerca desses estudos, como o de Biggs et al (2016)[8] baseado no Turnaway study[1], pode ser pertinente destacar que A. Biggs e Foster verificados como pesquisadores do Centro Global de Saúde Reprodutiva Bixby, organização parceira de clínicas de aborto Planned Parenthood (EUA), Marie Stopes International (Inglaterra), Instituto Guttmacher, Gynuity Health Project, Ipas, Ibis Saúde Reprodutiva, Population Council e diversas outras grandes organizações oficialmente ligadas a luta pela expansão do direito ao acesso ao aborto.
De modo complementar, um outro estudo de Reardon [10] analisa diversos estudos sobre saúde mental e aborto, que pesquisadores divergem no sentido de minimizar ou enfatizar resultados conforme suas perspectivas sobre o aborto.
Existem, porém, áreas de comum acordo entre pesquisadores deste tema tão polarizado. Reardon lista alguns como
1) O aborto contribui para resultados negativos para pelo menos algumas mulheres; e
2) Alguns grupos de mulheres correm previsivelmente maior risco de resultados negativos.
3) História anterior de problemas de saúde mental;
4) Fatores de personalidade;
5) Ambivalência na decisão do aborto;
6) Aborto após o primeiro trimestre, entre outros, citados detalhadamente na pesquisa de Reardon.
a) Pressão percebida de outras pessoas para interromper uma gravidez;
b) Oposição percebida ao aborto por parte de parceiros, familiares e/ou amigos;
c) Falta de apoio social percebido;
d) Sentimento de estigma;
Histórico do estudo Turnaway
David Reardon também relata que “os dados para o Turnaway Study foram coletados pela ANSIRH, um departamento da University of California San Francisco dedicado a promover o acesso ao aborto tanto internamente quanto no exterior.”
Adicionalmente, contou com financiamento da A Susan Thompson Buffett Foundation, de mais de US$ 4 bilhões, que segundo Reardon, visam “promover os esforços de controle populacional malthusiano, é a maior benfeitora do departamento“.
A seleção de participantes pelo estudo teria sido restrito a “trinta clínicas de aborto” em “um recrutamento seletivo de participantes”. E com base nesses dados enviesados, Reardon denuncia que foram produzidos mais de cinquenta artigos acadêmicos.
Uma amostra não aleatória e não representativa, estaria sendo utilizado para embasar dezenas de pesquisas acadêmicas que resultam em artigos favoráveis ao aborto.
“Nem todos que buscavam um aborto foram convidados a participar. Muitas mulheres foram seletivamente excluídas”, disse Reardon.
E continua:
“mesmo entre as convidadas, setenta por cento recusaram, outros 15% desistiram antes da primeira entrevista, e mais da metade do restante desistiu antes da última entrevista. Como resultado, houve autocensura pelas mulheres que anteciparam mais sofrimento, ou subsequentemente experimentaram mais sofrimento.”
Abortos forçados e problemas de saúde mental
A pesquisa de Reardon et al (2023)[6] e Readon (2018)[10], trazem uma perspectiva fundamental e complementar nesta temática, que é a falta de independência da mulher na decisão de abortar, que ocorre em grande frequência, sendo gerador de piores quadros de saúde mental. Mulheres cuja decisão de abortar foi fortemente influenciada por outras pessoas ou circunstâncias externas tendiam a relatar níveis mais baixos de satisfação e maior arrependimento.
O estudo de Reardon et al (2023)[6] encontrou que entre as 226 mulheres que relataram um histórico de aborto:
- 33% identificaram o aborto como desejado.
- 43% como aceito, mas inconsistente com seus valores e preferências.
- 24% como indesejado ou coagido.
Dessa forma, o grupo de mulheres que não desejava livremente o aborto corresponde a 67% das mulheres. Isso corrobora pesquisas anteriores sobre abortos forçados, publicadas em diferentes países, conforme revisão ampla realizada por Derosa e Garcia (2019) [11].
Esse não é um estudo isolado, mas confirma outras pesquisas, como é o caso da pesquisa Coleman et al (2017)[12], que ao pesquisar 987 mulheres que procuraram centros de crise e cuidados pós aborto, viu que 58,3% das mulheres abortou para satisfazer outras pessoas, indicando ter sofrido pressão para abortar, e 73,8% discordou que a decisão de abortar poderia ser identificada como inteiramente livre da pressão de outras pessoas; 28,4% abortou por medo de perder o parceiro.
Na mesma linha, pesquisas brasileiras confirmam essa realidade, neste contexto onde o aborto não é legalizado no Brasil.
O artigo acadêmico publicado por Nader, Blandino e Maciel (2007)[13] mostra que dentre um grupo de 21 mulheres brasileiras que fizeram um aborto induzido na amostra da pesquisa, 47% delas abortou por “alguém aconselhou a abortar”. Em 38% dos casos o pai da criança em gestação quem “incentivou” e em 23,% o pai “apoiou”.
Aparentemente, a pesquisa não desejava mostrar abortos forçados e usou os termos “pai incentivou a fazer o aborto” e “pai apoiou a fazer o aborto”, na estruturação da pesquisa. Desse modo, perguntando-nos sobre qual seria a diferença efetiva para a mulher, entre as que responderam que o pai apoiou e as que responderam que o pai incentivou, pode-se interpretar que as 38% em que o pai incentivou não tenha havido um apoio a decisão prévia da mulher, mas uma indicação para abortar, pressão ou coação .A pesquisa também mostra a participação de outros membros da família ao “incentivo ao aborto”. Em 9,5% dos casos, algum familiar “incentivou” ao aborto. Ou seja, somando os casos em que o pai ou a família incentivaram, temos possivelmente que 47,6% dos casos de aborto um terceiro incentivou o aborto.
A pesquisa indica também que 11,8% teve medo de perder o emprego, 20,6% abortou por falta de apoio do pai da criança e 17,7% por ter uma relação instável, 5,8% por medo da família e apenas 2,9% por “não querer a criança”. Ou seja, vemos a participação de terceiros em 55,9 % dos casos. A pesquisa corrobora com achados de pesquisas internacionais, como é o exemplar da pesquisa americana de Coleman et al (2017)[12]
Outra pesquisa similar[14], também realizada no Brasil, mostrou que 21% de um grupo de adolescentes abortou unicamente porque “o parceiro não queria” e 5,3% abortou porque “a família não aceitava”. Essa pesquisa analisou 230 mulheres que haviam sido hospitalizada após curetagem por aborto, na maternidade do Instituto Materno-Infantil de Pernambuco.
Considerações finais
Existem estudos conflitantes acerca dos desfechos de saúde mental para mulheres que fizeram abortos, especialmente com interpretações em cima do Turnaway Study[1], porém, defensores do acesso ao aborto parecem negligenciar os riscos de vieses em pesquisas que apontam a inocuidade do aborto no desfecho de saúde mental [9, 10, 11].
Enquanto pesquisadores com perspectiva pessoal favoráveis ao acesso do aborto parecem necessitar eticamente da defesa da inocuidade do aborto na saúde mental, pode-se defender que opositores do aborto, os pró-vidas, não necessitam provar que o aborto cause males a saúde mental, já que a posição se baseia primariamente na defesa do valor inalienável da vida humana no ventre materno, o nascituro. Não obstante, opositores do direito ao aborto recorrem com alguma frequência a essa problemática, tendo em vista a perspectiva caritativa e de atenção às mulheres que se encontram em situação de sofrimento após terem realizado abortos. Fundamentalmente, a parte que tem maior dependência deste debate é a parte pro-choice, justamente de onde se verifica um uso reiterado de estudos que apresentam críticas de conterem vieses de pesquisa, como o caso da Turnaway study [1]. Isso reforça como a polarização do debate por motivos ideológicos pode corroer a credibilidade da ciência e o avanço de um diálogo e debate profícuo.
Foi visto neste artigo brevemente o provável viés do principal estudo utilizado para defender a inocuidade do aborto na saúde mental. Um estudo[10] ressaltou que ambos os lados concordam em alguns pontos que apontam para o aborto como nocivo ao desfecho de saúde mental. Além disso, a realidade dos abortos forçados em diferentes níveis de pressão para abortar, ou falta de apoio à gestação, se apresenta como uma realidade cruel sobre as mulheres, presente em realidades com aborto legalizado e com aborto clandestino, sendo um fator que acarreta piora de saúde mental após o aborto de modo mais inequívoco.
Autor: Marlon Derosa, Prof. MSc.
Master Internacional em Bioética, pela Fundación Jérôme Lejeune, doutorando em bioética pelo Pontifício Ateneu Regina Apostolorum (APRA), professor de cursos de bioética e em pós-graduações no Instituto Pius e Centro Universitário Católica SC. Escritor com cinco livros publicados.
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